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Artigo de Opinião: A Relação dos Negros com a Maconha

A Proibição e a Relação dos Negros Brasileiros com a Maconha

O vínculo entre a maconha e o povo negro é antigo. Entenda como o racismo motivou a proibição. 

Por Brenda Evaristo.

Historicamente utilizada em rituais, clubes da diamba, para fins medicinais e recreativos, a cannabis nutre uma antiga e profunda relaçao com o povo negro. No Brasil, a planta é cultivada há quase cinco séculos, muito antes de países que têm políticas canábicas consideradas progressistas, como Canadá e Estados Unidos. E adivinha quem foram os responsáveis por sua introdução nas terras brasileiras: negros escravizados vindos de África, trazendo as primeiras sementes de maconha dentro de bonecas de pano em 1549, de acordo com o registro histórico do Ministério das Relações Exteriores. Além do uso terapêutico e recreativo, o “fumo-de-Angola” era consumido para tratar dores de estômago, dores de dente, câimbras, cólicas, além de agir como cicatrizante e melhorar o apetite. E ainda, os negros mantinham o sentido sagrado da erva – o emprego da maconha acontecia em candomblés, catimbós e xangô, como oferenda a orixás e em rituais de proteção e defumação.
A banda brasileira Ponto de Equilíbrio, conhecida por protestar a favor da legalização da planta, relata essa história na letra da música Santa Kaya: 

“Quando os negros vieram de África
Trouxeram uma planta pra fazer defumação
Faziam a limpeza no templo interior
Usando esta planta como forma de oração (...)”

Desde então, a cannabis faz parte da vida do povo afro-brasileiro, antes mesmo que a população branca começasse a consumi-la a partir da década de 1960, com o movimento hippie. Os clubes dos diambistas, como eram chamadas as sessões de duelos de rimas sobre o universo da erva, também eram protagonizados pelo povo negro, no início do século XX. Os participantes cantavam estrofes sempre com temas canábicos, em linguagem às vezes cifrada, com expressões e versos divertidos que remetiam à ganja. Um desses versos se tornou uma referência da canção “Dig Dig Hempa”, do renomado grupo Planet Hemp: 

“Dirijo é coisa excelente.
 Remédio de dor de dente. 
Assim como Deus não mente.
Dirijo não mata a gente”. 

Durante anos, o uso de maconha foi disseminado entre negros e também indígenas brasileiros, que passaram a cultivá-la para uso próprio. O consumo da planta, então, acontecia entre as camadas mais socioeconomicamente vulneráveis da população, ignorado pela classe dominante. 
A partir da segunda metade do século XIX, a popularização da planta entre os intelectuais franceses veio com trabalhos sobre os efeitos hedonísticos da cannabis, e a notícia chegou ao Brasil. Ela passou a ser considerada em nosso território como um excelente medicamento indicado para muitas enfermidades pela classe médica, e hoje, estudos científicos mais avançados confirmam os benefícios da cannabis, mesmo as pesquisas ainda sendo limitadas devido ao proibicionismo. 
A demonização da planta só começou na década de 1920, quando, na II Conferência Internacional do Ópio, em Genebra, o delegado brasileiro Dr. Pernambuco afirmou para as delegações de 45 outros países que "a maconha é mais perigosa que o ópio". A repressão policial ganhou força a partir da década de 1930, possivelmente como resultado da Conferência. Esse papel fundamental do Brasil na criminalização da erva no mundo é confirmado em uma publicação científica de 1934 do médico José Lucena:

"...já dispomos de legislação penal referente aos contraventores, consumidores ou contrabandistas de tóxico. Aludimos à Lei nº 4.296 de 06 de Julho de 1921 que menciona o haschich. No Congresso do ópio, da Liga das Nações Pernambuco Filho e Gotuzzo conseguiram a proibição da venda de maconha (grifo nosso). Partindo daí deve-se começar por dar cumprimento aos dispositivos do referido Decreto nos casos especiais dos fumadores e contrabandistas de maconha".

O vergonhoso protagonismo brasileiro na condenação da maconha foi amparado pelo preconceito e o racismo, elemento central da história do proibicionismo no país. Em 1915, o médico Rodrigues Dória, no Segundo Congresso Científico Pan-americano, realizado nos Estados Unidos, demonstrou bem esse cenário. Em sua apresentação do estudo “Os fumadores de maconha: efeitos e males do vício”, o médico formado pela Universidade Federal da Bahia indicou que a cannabis foi introduzida no país pelos negros como forma de vingança da “raça subjugada” pela escravidão. Ele também defendeu que o uso da cannabis seria uma característica “maligna” dos negros e atacou os rituais religiosos em que a planta era utilizada. 
As primeiras leis a instituir prisão em função do uso de cannabis miravam em negros – o texto da primeira lei do mundo a criminalizar o uso da maconha, desenvolvida em 1830 pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro, dizia que era “proibida a venda e o uso do pito do pango, bem como a conservação dele em casas públicas. Os contraventores serão multados, a saber: o vendedor em 20$000, e os escravos e mais pessoas, que dele usarem, em três dias de cadeia.” Muito antes de qualquer convenção internacional, se resolveu punir com prisão o usuário, negro escravizado ou pessoa pobre, enquanto um eventual vendedor seria punido apenas com multa. Enquanto isso, a crença popular era que o fumo da maconha era um hábito deselegante das classes baixas e de afrodescendentes, e esse discurso socialmente aceito legitimava a violência contra negros e dava aval à opressão policial, que serviu como tática de controle dessa população. 
Com essa contínua e crescente política sendo cada vez mais financiada ao longo dos anos, chegamos na conjuntura atual, marcada pelo encarceramento em massa e genocídio do povo negro brasileiro. O Brasil conta com a terceira maior população carcerária do mundo, em que a maioria dos presos são negros, jovens e de baixa escolaridade (Infopen, 2019). A representação de pessoas negras nas prisões é de 64%, e cerca de um terço de todos os presos do Brasil estão na cadeia por causa da lei antidrogas.
Esse falido sistema permitiu que Lucas Moraes, 28, fosse preso como traficante por menos de 10g de maconha. Condenado a cinco anos de reclusão, ele morreu encarcerado vítima de Covid-19. Dados de 2015 do Instituto Igarapé mostram que 75% das detenções por causa de ganja no Rio de Janeiro foram por quantias menores do que 50 gramas. Nesse sentido, é imensurável o número de negros que se encontram na cadeia por ter alguma relação com a maconha, a droga ilícita mais consumida no mundo. A planta que surgiu como um símbolo sagrado para os africanos, dentro de suas tradições, cultura e medicina, hoje representa um estigma muito prejudicial para o povo negro. Com a Lei de Drogas de 2006, o que foi considerado revolucionário – a decisão de não mais penalizar o usuário de drogas com prisão – hoje apenas arbitrariamente enquadra negros como traficantes, visto que há um perfil muito claro para a polícia sobre quem é usuário e quem é vendedor. Felizmente, esse sistema está novamente em pauta no Supremo Tribunal Federal (STF), que deve terminar de julgar em breve a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal. Se isso acontecer, ao menos 27% dos condenados por tráfico serão absolvidos.
Não há como analisar a política de drogas sem levar em conta a questão racial. O racismo estrutural está intrínseco às instituições brasileiras, permitindo que o controle social e práticas discriminatórias continuem acontecendo. Parte disso se dá devido à falta de representação negra no Poder Judiciário, em que a grande maioria branca de juízes continua a defender os interesses da classe dominante. Além disso, a falta de participação negra em discussões sobre a cannabis é notável. Os mais afetados pelo proibicionismo estão em menor número no mercado canabista nacional, além de ter menos força em eventos e feiras do segmento. Na edição de 2019 da Expo Head Grow, um dos principais eventos brasileiros de cultura canábico, apenas duas marcas eram de empreendedores negros, dentro de um grupo de 50 participantes. Com certeza, isso não é por acaso. 

Chegamos a uma constatação: é preciso regulamentar a maconha no Brasil. Alguém acredita que é coincidência a figura do maconheiro, do traficante e do bandido ser associado ao negro? E por que uma política que é falha, pois não promove a diminuição do uso de drogas (muito pelo contrário), continua acontecendo? Faz sentido que uma planta que traz tantos benefícios e é comprovadamente mais leve que outros narcóticos, como o álcool, continue a causar tantas prisões? Não faz. Pois como canta a banda de reggae já citada: 

“Veio para aliviar o fardo da escravidão
Veio para aconselhar, no meio de uma multidão
Hoje, hoje, hoje, a história é outra (...)” 
Ponto de Equilíbrio.
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